Por Aline Ferreira
Estimativas internacionais apontam o Brasil como um dos principais países da América Latina a contribuir para o tráfico internacional de mulheres, crianças e adolescentes. O tráfico se configura no Brasil em direção a exploração sexual comercial de mulheres, crianças e adolescentes, adoção internacional ilegal, turismo sexual e trabalho forçado.
Centenas de mulheres são exploradas sexualmente, Isabelli Potter, conhecida como Isa Potter, influenciadora digital trans e defensora dos direitos LGBTQIA +, lembra os dias mais difíceis e descreve como é viver à margem da sociedade.
Quem ver Isa em suas redes sociais sempre alegre, não imagina o sofrimento, a violência emocional e violação de direitos humanos impostos a ela pelo tráfico de mulheres.
Isa que mora na Itália há mais de 15 anos, conta que saiu do Brasil como uma forma de se manter viva. Aliciada por uma cafetina, saiu de Belém do Pará para São Paulo, para realizar algo que considerava um sonho – morar na Europa.
“Me vi nas ruas de Milão com uma dívida de 12 mil euros. A cafetina disse – ‘faz tua vida e paga tua conta’. Eu tive que me virar”. Um dos momentos mais difíceis para a influenciadora foi ser presa. “Não tinha documentação, corria de polícia, não desejo para meu pior hater”.
Isa chegou a ser detida por estar se prostituindo na rua, “eu me perguntei por que estava passando por tudo aquilo, ser presa em um país que não era o meu, foi a maior dificuldade, eu não conhecia as leis, não falava a língua, o pior momento do tráfico humano foi ter sido presa”, relata.
Ser presa trouxe para Isa um transtorno pós-traumático em relação à polícia, ela conta que o que a fez não ser deportada na última vez que foi detida, por já saber o idioma. “Tenho trauma da polícia, até hoje me tremo toda. É muito difícil viver fora do país. Em uma das vezes que fui presa, ao chegar no juiz dispensei o tradutor, pois já falava bem italiano, e isso colaborou para não ter sido expulsa do país”, explica.
Mas o que leva uma mulher a deixar o Brasil para tentar a sorte no exterior?
Analisando as disseminações de informações existentes sobre o tráfico de mulheres, pode-se delinear um perfil das vítimas. Em comum, são provenientes das camadas mais pobres da população, as mesmas pessoas que podem ser vítimas de exploração.
Aliciadas pelo tráfico, as mulheres recebem o convite de uma “madrinha” com promessas de vida melhor. “Tinha acabado de completar 19 anos e recebi o convite de uma conhecida para trabalhar na Europa, sabia do que esperava, mas a saída do Brasil foi ao mesmo tempo inconsciente e consciente. Foi um sonho que paguei para realizar”, conta.
“O tráfico mesmo que inconsciente fazia parte naquela época do sonho do travesti. É o inconsciente consciente. Na época não tinha consciência sobre, sabia que tinha que pagar para estar na Europa e hoje eu sei que de forma consciente o que tive que me submeter para estar aqui. Essa pessoa que me traficou também veio traficada, então não julgo”, relata Isa.
Há 20 anos não existia a internet para dar voz e relatar sobre a preocupação com a expectativa de vida da mulher trans, então o travesti só sabia que tinha que ir para a rua e pagar diária para cafetina. “…diversas situações que o submundo traz, hoje temos a internet que explica sobre a prostituição. Antes o plano da mulher trans era colocar seio, fazer plásticas, ir para a Europa e ficar rica, completa Isa.
A influenciadora relata que o tráfico humano ainda hoje acontece no Brasil, mesmo que de forma silenciosa, existe um mercado da prostituição que a maioria das pessoas não sabem, muitas meninas são tiradas do seio da sua família para se prostituir fora do país.
No ano de 2007, foram reportados casos de mulheres traficadas na Inglaterra encontradas em casas de massagem e bordéis entre muitas tailandesas e brasileiras. A polícia britânica calculou que em 2007, 300 mulheres e crianças traficadas vivem no país e que isso seja apenas a ponta do iceberg. Na Itália, em 20074, já existia segundo a OIM entre 20 e 30 mil mulheres imigrantes irregulares, em sua maioria trabalhando na indústria do sexo. Pelo menos 20% delas teriam entrado no país pela via do tráfico internacional.
Na Bélgica, em 1999, foram identificadas 334 mulheres vítimas do tráfico, em sua maioria provenientes da Nigéria, China, Albânia e Tailândia. Nos Países Baixos, tornou-se conhecimento de 205 mulheres traficadas em 1998, e em 1999, 288, em sua maioria da Europa Central, Europa Oriental, África e América Latina. Na Alemanha, entre 1998 e 1999, 448 mulheres e crianças traficadas foram assistidas por OSCs no retorno aos seus países de origem.
Consta que em 1999, as autoridades alemãs estimaram em 801 o número de mulheres traficadas no país, em sua maioria provenientes da Ucrânia, Polônia e Lituânia. Na Espanha, em 1998, foram identificadas 866 vítimas da exploração sexual, das quase 410 eram da Colômbia, 96 do Brasil e 81 da Rússia.
A influenciadora menciona que a cafetinagem ainda existe na Europa, faz parte do submundo da prostituição, “não vivo mais dentro da prostituição, mas sei que ainda existe a cafetinagem no mercado, é a fábrica de sonhos que só vem para quem oferece o sonho e não para quem sonha”.
Tem muitas trans exploradas dentro do que esse sonho traz. Isa recebe constantemente mensagens de menina que querem morar na Europa, “…é importante deixar muito claro que todo sonho tem seu preço. Qual preço você tem para pagar por esse sonho? É um assunto que precisa ser abordado, pois hoje a prostituição é uma escolha e dentro dos erros desse assunto, vemos a questão da transfobia que tem causado a morte de muitas mulheres”.
A vulnerabilidade atinge crianças e adolescentes. Mulheres tornaram-se mercadorias nas mãos das redes de traficantes. “Quando falamos do tráfico humano, seja mulher trans ou cis, jogam com seus sonhos e poucas se salvam, sou vítima desse sistema, o ciclo do tráfico humano se fortalece dentro do heteronormativo, porque o que é renegado na sociedade, ocorre no submundo que muitas vezes não são oportunidades, são uma guilhotina, são poucas as mulheres que não são julgadas por seus pecados”.
“Muitas irmãs se perderam dentro desse mundo, por pessoas que se aproveitam dos nossos sonhos, pulei muita fogueira na minha vida, cada uma acesa foi pela sociedade. Quando olho para trás e vejo que dentro das fogueiras que pulei tinha de mulheres trans mortas e a fumaça que sai dessas fogueiras, tem um significado, um corpo trans que morreu e um ensinamento do que eu devo fazer ou que devo ficar atenta para não morrer”.
A mulher trans é levada a outros países, pela dor da violência causada pela sociedade que a empurra para o submundo, para a esquina, para as margens quando não se faz parte dela, seja por ser preta, pobre, travesti ou trans. A sociedade forma nos indivíduos a ideia de que homossexualidade, o travestismo e a transexualidade são meios de vida não aceitos pela família tradicional. Assim, quando a pessoa trans percebe que não se enquadra ao senso comum (que seria o heterossexual) sofre na maioria das vezes bullying, que a faz se sentir totalmente fora de contexto.
Isa se emociona ao narrar “nesse submundo, muitas foram assassinadas, queimadas nas fogueiras, muitas irmãs já se foram, queimadas nas esquinas das travestis que morreram. Pulei muita fogueira, mas dentro dessa fogueira queimaram muitas mulheres trans que morreram e que me ensinaram muito”.
Isa relembra ainda diversas mulheres trans que morreram no Brasil e inconscientemente através da sua morte trouxeram a importância da vida trans, como Dandara dos Santos e Keron Ravache. “Vidas que se foram para nos dar o direito de sermos quem somos”, explica.
A influenciadora também destaca outras mulheres trans que atuam em prol da representatividade dos direitos de ser trans. “Temos mulheres influenciadoras que estão vivas, como Barbara Aires, Viviany Beleboni, Isabella Santorinne, MC Trans, Gabriela Loran, Brisa, e através da digitalização trans, trazem conteúdo, fazendo com que possamos nos perceber e reconhecer nosso lugar na sociedade”. Isa tem ainda um exemplo de superação, sua prima Thalita Porter, uma mulher trans que quebrou os padrões de uma família tradicional, sendo a primeira pessoa LGBTQIA+ da família.
A influencer destaca ainda o projeto Lives 4Trans+, um perfil desenvolvido por ela, Barbara Arrais e Viviany Beleboni nas redes sociais, para levar conteúdo com entrevistas e debates como forma de conscientização para pessoas do LGBTQIA+.
Isa se considera um ativista por estar viva e usar sua voz para conscientizar outras mulheres trans, assim como ela.
“sim sou ativista porque sou viva, meu maior ativismo é estar viva e uso minha voz para trazer conteúdo e impedir que outras pessoas passem pelo que eu passei. Sou ativida, estou viva. E devo isso à Europa, pois se eu estivesse no Brasil, poderia não está aqui para falar”.
Conheça mais sobre Isa Potter em seu perfil no Instagram @izabellipotter e o projeto Lives 4Trans+ em @lives4trans.