Criança que não fala não é preguiçosa: o que realmente está por trás dos atrasos de linguagem

Demorar para buscar ajuda por acreditar em mitos populares  compromete o desenvolvimento cognitivo, emocional e escolar da criança. Especialista alerta: o diagnóstico tardio é um dos principais fatores de agravamento.

Durante décadas, frases como “ele é preguiçoso para falar”, “ele entende tudo, só não fala” ou “meninos demoram mais mesmo” circularam entre famílias brasileiras como explicações aceitáveis para atrasos no desenvolvimento da linguagem. No entanto, pesquisadores e especialistas alertam: esses mitos estão entre as principais causas de atraso no diagnóstico fonoaudiológico e dos prejuízos que podem acompanhar a criança por toda a vida escolar.

Segundo dados da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, 15% das crianças em idade pré-escolar apresentam algum grau de atraso de fala, mas apenas uma parte chega precocemente aos consultórios. Um estudo da USP (2023) revelou que crianças cujo atraso não foi tratado até os 4 anos têm até três vezes mais risco de desenvolver dificuldades de alfabetização, retraimento social e problemas emocionais.

A fonoaudióloga Adriana Fiore, especialista em linguagem infantil, explica que a ideia de “preguiça” não faz sentido do ponto de vista biológico. “A fala é uma habilidade construída. Ela depende de audição, coordenação motora, maturidade neurológica, repertório linguístico e interação social. Não se trata de querer ou não querer falar. Quando uma criança não fala, há um motivo — e nosso trabalho é descobrir qual é”, afirma.

Estudos da American Speech-Language-Hearing Association (ASHA) reforçam que o início tardio da intervenção reduz a eficácia terapêutica em até 50%, pois a janela de neuroplasticidade do cérebro infantil é mais intensa nos primeiros anos de vida. “Cada mês conta. Esperar até quatro anos para ver se a fala irá surgir é um atraso irreversível para muitas crianças. Se há dúvida, investigue. O risco de esperar é muito maior do que o risco de avaliar cedo”, completa Adriana.

Entre os mitos mais comuns no consultório, ela menciona:
– “Meninos falam mais tarde que meninas”
– “Ele não fala porque é caçula”
– “Ele não precisa falar, todo mundo entende o que ele quer”
– “É só vergonha / preguiça / manha”

Adriana reforça que todos esses mitos escondem problemas reais, como atrasos globais de linguagem, dificuldades auditivas, falhas na estimulação, questões neurológicas e até impactos respiratórios. “Uma criança nunca deixa de falar porque preguiça. Linguagem é interação. Ela se constrói em vínculos, respostas, troca. Quando não aparece, precisamos intervir — não culpar a criança”, ressalta.

Além do aspecto clínico, Adriana destaca o papel do ambiente familiar. Um levantamento da Universidade de Harvard (2022) mostrou que crianças que recebem maior quantidade de interações verbais antes dos três anos têm vocabulário até 30% maior aos quatro anos e melhor desempenho na alfabetização. “Conversar, cantar, brincar, nomear objetos e olhar nos olhos são estímulos poderosos. A fala nasce do vínculo, do afeto e da conexão”, conclui Adriana.